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A review by katya_m
O Bailarino by Colum McCann, Fernando Dias Antunes
Nada neste mundo alguma vez se aproxima da perfeição.
Já andava para me estrear com Colum McCann há uns tempos, mas, por qualquer razão, Apeirogon é um daqueles livros que não me está a inspirar lá muita vontade (precisamente por tanta gente gostar dele é que receio pegar-lhe). Por isso, a solução foi começar por este O Bailarino. Como sempre, quando lhe peguei nem sequer tinha lido o nome de Nureyev na contracapa - essa zona está completamente interdita antes de iniciar uma leitura -, mas isso, mais uma vez, revelou ser boa ideia já que me permitiu apreciar o romance para lá do protagonista (cuja imagem me ficou gravada a ferro e fogo na memória quando estudei L'après-midi d'un faune - pesquisem e agradeçam-me depois). Algo curiosa é a minha abordagem a uma figura que sempre me inspirou igual dose de atração e receio, levando a que me afastasse da sua biografia um pouco de forma propositada, um pouco sem querer. Mas isso não foi nenhum handicap para esta leitura porque ela não se pretende uma biografia e sim um romance. Um romance com teor biográfico, mas um romance que pretende explorar mais além, recuperando, através de fragmentos, uma vida maior do que a vida, uma personagem lendária, um homem escondido pela capa de uma estrela.
Assim discorre O bailarino, recriando para o leitor ambientes de vários matizes que vão desde a guerra, à infância em Ufa onde Nureyev (Rudik) cresce sob a pesada mão do pai e o rigor do regime soviético, à descoberta de uma paixão sublime...
Rudik não se lamuriava das contusões e não tinha aquele olhar vazio que vi muitas vezes noutros rapazes e homens. Era espancado por causa da dança e, no entanto, continuava a dançar, por isso, uma coisa compensava a outra. As tareias surgiam no ímpeto do momento, inclusive no dia após ter completado treze anos de idade. Não duvido que Rudik merecesse - era capaz de ser terrivelmente impertinente - mas eu diria que, espancando-o, negando-lhe a possibilidade de dançar, o pai estava a proporcionar-lhe o dom da necessidade.
...ao primeiro palco que pisa, aos seus esforços sobrenaturais para se tornar o maior entre os maiores...
Inalava tudo, tornava-se mais alto e magro, com um sorriso malicioso que podia silenciar uma sala, mas não estava consciente do seu corpo nem do seu poder. Acima de tudo, era tímido e receoso. Anna dizia-lhe que todo o seu corpo devia dançar, todo, não apenas os braços ou as pernas. Beliscava-lhe a orelha, dizendo que até o lóbulo devia acreditar no movimento. Endireita as pernas. Marca as viragens mais depressa. Trabalha na tua linha. Absorve a dança como papel mata-borrão. Ele apegava-se a tudo diligentemente, nunca desistindo sem ter aperfeiçoado um passo, mesmo que isso significasse outra tareia do pai.
...à fama, aos excessos, ao mediatismo e à exaltação que o circundam:
Toda a gente tinha uma história de Rudi e cada qual mais ultrajante do que a seguinte e provavelmente falsa - de modo que Rudi é um mito vivo.
Colum McCann constrói assim um romance intimista e belo com uma certa aura de tristeza e desapego; um romance que exsuda admiração pela figura de Nureyev; um romance que louva a sua intensidade...
Certamente havia nele mais intuição do que intelecto, mais espírito do que conhecimento, como se já cá tivesse estado antes, sob uma outra forma, algo selvagem e bravio.
... a sua determinação e autoconfiança...
Arepende-se de alguma coisa, Monsieur Nureyev?
Quando já tudo está dito e feito, eu não mudaria nada que tenha dito ou feito. Se olharmos para trás, arriscamo-nos a cair das escadas
Isso é muito filosófico.
Sei ler.
...mas também as suas lutas, a sua fragilidade, o seu sentimento de abandono, a dureza da expatriação...
Sim, sou um felizardo. Tenho um contrato, uma casa, massagista, agentes, amigos. Dancei em quase todos os continentes. Tomei chá na Casa Branca com o Presidente Kennedy antes de ele ter sido baleado. Margot e eu dançámos na tomada de posse de Johnson. Na Casa da Opera Estatal de Viena tivemos oitenta e nove chamadas ao palco. As ovações muitas vezes duram meia hora. Sou gloriosamente feliz, mas por vezes, acordo de manhã com a horrível sensação de que tudo acabou e que nunca teve grande significado. Não tenho qualquer desejo de ser servido como uma sensação, um prodígio de nove dias. Vou de país para país. Sou uma não-pessoa onde me torno uma pessoa. Sou desprovido de estado onde existo. É assim e sempre foi assim, suponho mesmo que desde os nossos tempos em Ufa. É a dança e só a dança que me mantém vivo.
Para McCann, Nureyev surge como um homem belo, carismático e talentoso, ora generoso ora avaro, ora gentil ora irascível, em profunda fratura consigo mesmo, tentando preencher por força da fama, do dinheiro ou do sexo, os espaços de ninguém que o habitam:
Rudi arrastou os primeiros três homens que conseguiu encontrar, alinhou-os contra a parede, Uma autêntica brigada de fuzilamento! E foi-se a eles da mesma maneira que dançava, cheio de elegância e ferocidade, a sua fama sexual quase igualando o renome da sua dança, sabia-se mesmo que Rudi fazia uma pausa nas actuações para uma rapidinha, e uma vez em Londres saiu do teatro no intervalo, vestiu o sobretudo por cima dos trajes de dança, mudou de sapatos, desceu a rua a correr até às casas de banho públicas, onde entrou numa cabina e foi detido por assediar um polícia.
Estruturalmente complexo, apresentando diferentes pontos de vista, diferentes narradores e diferentes abordagens, O Bailarino oferece, na realidade, dois Nureyev diferentes: um Nureyev pré-deserção, muito jovem, muito doce e muito resiliente por quem o leitor sente uma ternura indizível e um Nureyev pós-deserção, duro, mais superficial e couraçado contra o mundo por quem o leitor sente respeito, mas também uma certa animosidade: Nureyev homem, Nureyev mito.
Ao longo da narrativa sente-se o efeito de contraste que o autor quer atribuir ao conflito interno do bailarino: uma contenda entre dinheiro e fama, e a negação da sua identidade, do regresso a casa (à Rússia que o condena a sete anos de trabalhos forçados pelo crime de deserção) e à família; o conflito entre uma vida sob os holofotes e uma vida sob as escutas de amigos e inimigos; a vida pública e a privada, a vida lícita e a ilícita, a vida diurna e a vida noturna... Do seu contacto com personalidades famosas, divas, rockstars, McCann salienta as ligações que foram alimentando o pequeno Rudi, permitindo-lhe sobreviver sob a capa de Rudolf: da família que abandona na Rússia, às parceiras de dança, aos amantes, aos serventes, aos fãs.
O próprio romance convoca os movimentos e respirações de um bailado, seguindo o seu rumo sem pressas, com delicadeza, avançando e recuando, deslizando ao longo de um palco em que se desvenda o homem, despindo o mito. Essa capacidade de transmutar biografia, romance e fresco é qualquer coisa de verdadeiramente único nesta obra justificando a sua leitura por quem for fã do autor, do bailarino ou somente de boa literatura.
No ajuntamento, Bacon perguntou: porquê a dança? Retorqui: porquê a pintura? Prolongou o cigarro e disse que a pintura era a linguagem que daria à sua alma, se tivesse de ensinar a alma a falar.
Sim!
Já andava para me estrear com Colum McCann há uns tempos, mas, por qualquer razão, Apeirogon é um daqueles livros que não me está a inspirar lá muita vontade (precisamente por tanta gente gostar dele é que receio pegar-lhe). Por isso, a solução foi começar por este O Bailarino. Como sempre, quando lhe peguei nem sequer tinha lido o nome de Nureyev na contracapa - essa zona está completamente interdita antes de iniciar uma leitura -, mas isso, mais uma vez, revelou ser boa ideia já que me permitiu apreciar o romance para lá do protagonista (cuja imagem me ficou gravada a ferro e fogo na memória quando estudei L'après-midi d'un faune - pesquisem e agradeçam-me depois). Algo curiosa é a minha abordagem a uma figura que sempre me inspirou igual dose de atração e receio, levando a que me afastasse da sua biografia um pouco de forma propositada, um pouco sem querer. Mas isso não foi nenhum handicap para esta leitura porque ela não se pretende uma biografia e sim um romance. Um romance com teor biográfico, mas um romance que pretende explorar mais além, recuperando, através de fragmentos, uma vida maior do que a vida, uma personagem lendária, um homem escondido pela capa de uma estrela.
Assim discorre O bailarino, recriando para o leitor ambientes de vários matizes que vão desde a guerra, à infância em Ufa onde Nureyev (Rudik) cresce sob a pesada mão do pai e o rigor do regime soviético, à descoberta de uma paixão sublime...
Rudik não se lamuriava das contusões e não tinha aquele olhar vazio que vi muitas vezes noutros rapazes e homens. Era espancado por causa da dança e, no entanto, continuava a dançar, por isso, uma coisa compensava a outra. As tareias surgiam no ímpeto do momento, inclusive no dia após ter completado treze anos de idade. Não duvido que Rudik merecesse - era capaz de ser terrivelmente impertinente - mas eu diria que, espancando-o, negando-lhe a possibilidade de dançar, o pai estava a proporcionar-lhe o dom da necessidade.
...ao primeiro palco que pisa, aos seus esforços sobrenaturais para se tornar o maior entre os maiores...
Inalava tudo, tornava-se mais alto e magro, com um sorriso malicioso que podia silenciar uma sala, mas não estava consciente do seu corpo nem do seu poder. Acima de tudo, era tímido e receoso. Anna dizia-lhe que todo o seu corpo devia dançar, todo, não apenas os braços ou as pernas. Beliscava-lhe a orelha, dizendo que até o lóbulo devia acreditar no movimento. Endireita as pernas. Marca as viragens mais depressa. Trabalha na tua linha. Absorve a dança como papel mata-borrão. Ele apegava-se a tudo diligentemente, nunca desistindo sem ter aperfeiçoado um passo, mesmo que isso significasse outra tareia do pai.
...à fama, aos excessos, ao mediatismo e à exaltação que o circundam:
Toda a gente tinha uma história de Rudi e cada qual mais ultrajante do que a seguinte e provavelmente falsa - de modo que Rudi é um mito vivo.
Colum McCann constrói assim um romance intimista e belo com uma certa aura de tristeza e desapego; um romance que exsuda admiração pela figura de Nureyev; um romance que louva a sua intensidade...
Certamente havia nele mais intuição do que intelecto, mais espírito do que conhecimento, como se já cá tivesse estado antes, sob uma outra forma, algo selvagem e bravio.
... a sua determinação e autoconfiança...
Arepende-se de alguma coisa, Monsieur Nureyev?
Quando já tudo está dito e feito, eu não mudaria nada que tenha dito ou feito. Se olharmos para trás, arriscamo-nos a cair das escadas
Isso é muito filosófico.
Sei ler.
...mas também as suas lutas, a sua fragilidade, o seu sentimento de abandono, a dureza da expatriação...
Sim, sou um felizardo. Tenho um contrato, uma casa, massagista, agentes, amigos. Dancei em quase todos os continentes. Tomei chá na Casa Branca com o Presidente Kennedy antes de ele ter sido baleado. Margot e eu dançámos na tomada de posse de Johnson. Na Casa da Opera Estatal de Viena tivemos oitenta e nove chamadas ao palco. As ovações muitas vezes duram meia hora. Sou gloriosamente feliz, mas por vezes, acordo de manhã com a horrível sensação de que tudo acabou e que nunca teve grande significado. Não tenho qualquer desejo de ser servido como uma sensação, um prodígio de nove dias. Vou de país para país. Sou uma não-pessoa onde me torno uma pessoa. Sou desprovido de estado onde existo. É assim e sempre foi assim, suponho mesmo que desde os nossos tempos em Ufa. É a dança e só a dança que me mantém vivo.
Para McCann, Nureyev surge como um homem belo, carismático e talentoso, ora generoso ora avaro, ora gentil ora irascível, em profunda fratura consigo mesmo, tentando preencher por força da fama, do dinheiro ou do sexo, os espaços de ninguém que o habitam:
Rudi arrastou os primeiros três homens que conseguiu encontrar, alinhou-os contra a parede, Uma autêntica brigada de fuzilamento! E foi-se a eles da mesma maneira que dançava, cheio de elegância e ferocidade, a sua fama sexual quase igualando o renome da sua dança, sabia-se mesmo que Rudi fazia uma pausa nas actuações para uma rapidinha, e uma vez em Londres saiu do teatro no intervalo, vestiu o sobretudo por cima dos trajes de dança, mudou de sapatos, desceu a rua a correr até às casas de banho públicas, onde entrou numa cabina e foi detido por assediar um polícia.
Estruturalmente complexo, apresentando diferentes pontos de vista, diferentes narradores e diferentes abordagens, O Bailarino oferece, na realidade, dois Nureyev diferentes: um Nureyev pré-deserção, muito jovem, muito doce e muito resiliente por quem o leitor sente uma ternura indizível e um Nureyev pós-deserção, duro, mais superficial e couraçado contra o mundo por quem o leitor sente respeito, mas também uma certa animosidade: Nureyev homem, Nureyev mito.
Ao longo da narrativa sente-se o efeito de contraste que o autor quer atribuir ao conflito interno do bailarino: uma contenda entre dinheiro e fama, e a negação da sua identidade, do regresso a casa (à Rússia que o condena a sete anos de trabalhos forçados pelo crime de deserção) e à família; o conflito entre uma vida sob os holofotes e uma vida sob as escutas de amigos e inimigos; a vida pública e a privada, a vida lícita e a ilícita, a vida diurna e a vida noturna... Do seu contacto com personalidades famosas, divas, rockstars, McCann salienta as ligações que foram alimentando o pequeno Rudi, permitindo-lhe sobreviver sob a capa de Rudolf: da família que abandona na Rússia, às parceiras de dança, aos amantes, aos serventes, aos fãs.
O próprio romance convoca os movimentos e respirações de um bailado, seguindo o seu rumo sem pressas, com delicadeza, avançando e recuando, deslizando ao longo de um palco em que se desvenda o homem, despindo o mito. Essa capacidade de transmutar biografia, romance e fresco é qualquer coisa de verdadeiramente único nesta obra justificando a sua leitura por quem for fã do autor, do bailarino ou somente de boa literatura.
No ajuntamento, Bacon perguntou: porquê a dança? Retorqui: porquê a pintura? Prolongou o cigarro e disse que a pintura era a linguagem que daria à sua alma, se tivesse de ensinar a alma a falar.
Sim!